Ficções climáticas: entre fogo e gelo, graphic novels imaginam cotidiano de refugiados ambientais

Brasil de Fato

No mesmo instante em que América Latina, e também parte da América do Norte e Europa, é devastada por incêndios, com peixes aparecendo mortos na Grécia, nas represas de São Paulo e nas baías do Pantanal, uma cápsula espacial deixou o planeta Terra, carregando um bilionário. 

A caminhada espacial do turista Jared Isaacman, o primeiro civil estratosférico, é alegórica e literal: o planeta precisa ser exaurido e 99,9% das pessoas que vivem nele têm que morrer para sustentar o luxo divino de meia dúzia de reis do cosmo. 

Não se trata de um problema moral, mas material e concreto, como mostram dados extraídos do relatório Igualdade Climática: um Planeta para os 99%, da Oxfam International, de 2023.

O 1% mais rico da população mundial emite a mesma quantidade de carbono que os 66% mais pobres. Isso significa que um pequeno grupo de pessoas extremamente ricas é responsável pela mesma poluição que quase 5 bilhões de pessoas que vivem em condições de pobreza. Uma pessoa que está entre os 99% mais pobres da população, como eu ou você que lê este texto agora, levaria cerca de 1,5 mil anos para produzir a mesma quantidade de carbono que um bilionário produz em um único ano.
 
A conta é simples: para que uma pequenina casta de bilionários apenas exista e respire, a vida na Terra precisa desaparecer. Para que eles possam viajar para o espaço, nossos filhos têm que morrer respirando fuligem, comendo verduras intoxicadas, bebendo água envenenada com microplástico e pesticidas.

“Os cientistas categorizam agora a Terra como um planeta tóxico”, escreve o professor do departamento de História da Unicamp Luiz Marques, no seu livro O decênio decisivo (Elefante, 2023). “A letalidade e os danos para a saúde humana e de outras espécies de muitas das mais de 140 mil novas substâncias químicas e pesticidas sintetizados desde 1950 não são ainda suficientemente conhecidos, tampouco os danos causados pela exposição prolongada.”

Isso é uma aberração, tratada cotidianamente como normalidade. 

A cena desta semana, de naves de super-ricos vagando no espaço, lembra Elysium (2013), filme do diretor sul-africano Neill Blomkamp, que filmou a Terra como um planeta coberto por detritos da produção industrial-tóxica do capitalismo tardio. O filme alegoriza os refugiados de hoje, mortos no Mediterrâneo, e os do amanhã, impedidos de participar dos benefícios do avanço tecnológico e dos bens socialmente construídos. 

Toda a superfície terrestre de Elysium se transformou numa imensa periferia povoada por trabalhadores vigiados por uma polícia truculenta de máquinas. O capitalismo distribui muito bem a pobreza. E concentra a riqueza numa parcela insignificante da população. A elite global vive isolada numa estação sintética, que simula a vida na Terra, cheia de jardins e prédios envidraçados. “Há esperança, esperança infinita”, escreveu Franz Kafka. “Mas não para nós”.

Para quem cresceu no meio do ambiente extrativista da mineração, que devasta nascentes e matas ciliares na pequena cidade de Luminárias, Minas Gerais, como eu, assistindo desde sempre empresários donos de pedreiras construindo fortunas, com casas de luxo e chalés à beira do céu, enquanto os trabalhadores como meu pai se aposentaram com o pulmão cheio de areia, essas ficções não são o futuro: são também o passado e o presente.  

A filantropia não vai nos salvar

Em O Perfuraneve, aclamada graphic novel francesa de ficção científica, publicada pela primeira vez nos anos 80, a Terra se transformou em um deserto congelado após um experimento científico fracassado, que tenta reverter o aquecimento global. Os únicos sobreviventes da humanidade residem em um trem gigantesco, criado pelo filantropo Sr. Wilford, que percorre o globo incessantemente, movido por um motor perpétuo.

Dentro do trem, a sociedade de refugiados climáticos se mantém desigual. Os passageiros da primeira classe desfrutam de luxos e privilégios, enquanto os da cauda vivem em condições miseráveis, enfrentando fome, doenças e opressão. Essa divisão social extrema gera tensões e conflitos crescentes.

A narrativa, escrita por Jacques Lob e ilustrada por Jean-Marc Rochette, acompanha a jornada de Proloff, um habitante da cauda que se envolve em um movimento revolucionário que busca romper essa estrutura opressiva e alcançar a locomotiva, onde supostamente reside o controle do trem e a possibilidade de uma vida melhor.

A história foi brilhantemente adaptada para o cinema pelo coreano Bong Joon-ho, em O expresso do amanhã (2013), que dialoga com os temas de seu filme mais conhecido e premiado, Parasita (2019). A versão recente da Netflix, não é tão interessante.

Bilionários fazem mal ao mundo não porque são moralmente pervertidos, egoístas e maldosos. Alguns até são. A despeito de sua boa vontade, a cadeira que ocupam na sociedade, o lugar social, parasitando a riqueza produzida coletivamente, direta ou indiretamente, custa a vida de muita gente. E do próprio planeta.

Incêndios sem fim

Já na graphic novel A Estrada, adaptação do artista Manu Larcenet para obra homônima de Cormac McCarthy, retrata a jornada angustiante de um pai e seu filho, dois refugiados climáticos, em um mundo pós-apocalíptico devastado por incêndios sem fim.

A paisagem é desoladora, cinzenta e hostil. A fome, o frio e a ameaça constante de canibais transformam a busca por um lugar seguro em um desafio brutal. Nesse ambiente extremado, onde a luta pela sobrevivência a qualquer custo coloca todos contra todos, pai e filho tentam transmitir um ao outro vestígios de uma ética e solidariedade.

Se em Mad Max o culto doentio ao automóvel numa sociedade centrada no petróleo e na solução burra e medíocre do transporte individual sobrevive ao próprio fim do mundo, a criativa e sombria imaginação Cormac McCarthy não consegue prever novos arranjos afetivos para além de uma típica família burguesa. Mesmo quando o pai morre, o garoto é adotado por uma família que parece ter saído de um comercial de margarina: pai, mãe, criança e cachorro.

É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?

Rebecca Solnit escreveu um recente ensaio, presente na edição deste mês da revista Quatro Cinco Um, no qual diz que o pensamento apocalíptico seria uma espécie de “fracasso narrativo: a incapacidade de imaginar um mundo diferente daquele que vivemos hoje.”

É difícil compartilhar do seu otimismo quando a solução para o transporte do futuro, sob a ideologia de uma transição para energia limpa, seriam carros elétricos, com baterias de lítio

De acordo com um estudo da Universidade de Leuven, a produção de uma bateria de 100 kWh para um carro elétrico pode gerar entre 6,2 e 10,5 toneladas de CO2, dependendo da tecnologia e da origem da eletricidade utilizada na fabricação. A mineração de lítio, por exemplo, consome grandes quantidades de água, podendo chegar a 2 milhões de litros por tonelada de lítio extraído, segundo o relatório do Friends of the Earth. Além disso, a reciclagem de baterias ainda é um desafio, com taxas de reciclagem global abaixo de 5%.

O “fracasso narrativo” é nos deixarmos levar pelas lindas campanhas e promessas ESG de carbono zero das montadoras, que mantêm o arcaico modelo de transporte dos anos 50, centrado no indivíduo solitário com um carro na garagem, e não em cidades sustentáveis, com transporte coletivo barato, de qualidade, inteligente e ecológico, para todos.

“Fracasso narrativo” é se submeter aos métodos predatórios do agronegócio, devastando a Amazônia e o Pantanal para criar gado, despejando no solo e nas águas cotidianamente toneladas de substâncias proibidas nos EUA e na União Europeia. 

“Fracasso narrativo” é não assumir radicalmente que a solução está em práticas agroecológicas de uso da terra, pensadas coletivamente como nos assentamentos do MST, ou nas comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Uma tecnologia de coabitação do planeta muito mais inteligente, sofisticada e disruptiva. Um futuro ancestral, como costuma dizer Ailton Krenak.

A saída para a vida ecologicamente responsável está em práticas e modos de organização coletivistas. Práticas verdadeiramente anticapitalistas que enfrentam os pilares da catástrofe climática, que são o colonialismo, a misoginia, o racismo, conjuntamente formadores da lógica da exploração.

“Quando começamos pela catástrofe do colonialismo e da escravidão, a localização do colapso climático, ambiental e social contemporâneo gira e sofre uma mutação (…) Catástrofes ancestrais são passado e presente”, escreve Elizabeth A. Povinelli, no seu ótimo livro Catástrofe Ancestral: existências no liberalismo tardio.

É aqui que começam, de verdade, as novas histórias sobre o clima. 

*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e é autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com. 

**Este é um artigo de opinião e não reflete necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.

Da Redação