Conheça a luta de Zé Maria do Tomé, assassinado por se levantar contra os efeitos dos agrotóxicos nas crianças
Brasil de Fato
José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, foi morto com 25 tiros em abril de 2010 no município de Limoeiro do Norte, interior do Ceará. Mais de 14 anos após o crime, um dos envolvidos, o réu Francisco Marcos Lima Barros foi levado a júri popular na última quarta-feira (9) e condenado a 16 anos de prisão. Zé Maria era ativista contra a pulverização aérea de agrotóxicos na localidade do Sítio Tomé, na Chapada do Apodi, desde o fim dos anos 90, quando descobriu que a causa de intoxicações na pele de sua filha era a água contaminada com pesticidas.
Até hoje, esse não é um caso isolado – segundo relatório do Unicef publicado em 2022, mais da metade de crianças e adolescentes brasileiros vivem em áreas com alto risco de exposição à poluição por pesticidas. São 27,8 milhões de crianças e adolescentes expostos. Esse foi o indicador com resultado mais grave analisado pela pesquisa.
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Márcia Xavier teve intoxicações nos membros inferiores e órgãos genitais. “Eram crianças, adultos, gente de todas as idades com coceira, uma espécie de alergia. Eles me levaram ao hospital e chegou ao ponto da médica pedir que eles me dessem banho com água mineral e lavassem minhas roupas de cama todos os dias, mas não tinha jeito. Papai não se conformava e foi investigar. Ele descobriu que tinha sido por causa de uma água intoxicada com agrotóxico. Foi ali que tudo começou, eu atribuo a luta dele a isso”, conta Márcia, filha mais velha de Zé Maria, hoje com 33 anos, psicóloga e diretora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental (Ceresta) de Limoeiro do Norte.
Após o projeto de irrigação do governo federal executado pelo Departamento Nacional de Obra Contra as Secas (DNOCS) na década de 80, a Chapada do Apodi, no Ceará e Rio Grande do Norte, tornou-se uma das principais regiões para empresas do agronegócio no Brasil. Mesmo em épocas em que a caatinga recolhe seu verde, subir a estrada para a Chapada é um retrato do poder do setor: a mata livre cinzenta dá lugar às plantações cercadas e verdes, de diversos tipos de frutas e grãos – soja, banana, milho e outros.
Com um ano e nove meses, Sofia, a filha mais velha de Márcia e primeira neta de Zé Maria, foi diagnosticada em 2013 com telarca precoce, desenvolvimento mamário antes dos oito anos. “Foi bem no auge que outras crianças daqui também estavam sendo diagnosticadas com puberdade precoce”, lembra Márcia.
Uma pesquisa da Universidade de Sidney, publicada na Nature Geoscience, observou que o Ceará é um dos estados brasileiros com maior número de regiões com ecossistemas poluídos por agrotóxicos, com taxa de risco maior que 4, a mais alta.
Primeira infância, mudanças climáticas e agrotóxicos
Ada Pontes de Aguiar, médica e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cariri, pesquisou, na Chapada do Apodi, as consequências dos agrotóxicos nas crianças, e a família de Márcia foi uma das analisadas. Seu estudo, publicado em 2017, comprovou os efeitos da exposição aos pesticidas nas crianças, desde o ventre da mãe até o contato com o ambiente da localidade – malformações congênitas e puberdade precoce eram comuns no território.
Dentre os fatores agravantes das substâncias no organismo de bebês e crianças, principalmente nos primeiros mil dias de vida, a médica destaca a dificuldade de processamento e a concentração das substâncias no corpo das crianças. “Se ela [a criança] for exposta a agrotóxicos nos primeiros anos de vida, ela vai ter dificuldade para excretar essas substâncias pelo fígado e pelos rins, que são os dois principais órgãos que processam os agrotóxicos (…) Se a gente for dividir a dose [de agrotóxico] pelo peso corporal, a gente vai ver que a concentração dessas substâncias nas crianças é muito maior”, diz.
Um estudo feito pela Fiocruz em 2019 também diagnosticou que, em outras regiões com maior exposição a agrotóxicos, a taxa de anomalias era mais alta que a média do país.
E não é só o contato ao ingerir alimentos com agrotóxicos que podem causar intoxicação. Em áreas poluídas, até os primeiros passos de bebês e o brincar na terra de crianças podem ser comprometedores. “Os agrotóxicos se depositam no chão, independente da forma como eles são utilizados, a maioria deles vai decantar e se depositar no chão”, adverte Pontes.
Na região da Chapada do Apodi de Zé Maria, não é difícil ver crianças em contato com a terra, soltando pipas ou andando de bicicleta com os pés descalços perto das enormes plantações. Isabel Amando de Barros, especialista em infância e natureza do Instituto Alana, afirma que as mudanças climáticas comprometem o direito das crianças ao desenvolvimento em um ambiente saudável.
“Assim como as crianças de Limoeiro, que têm uma relação de risco relacionado a sua saúde com relação à natureza, tem outras crianças que vão ter uma relação de medo [com a natureza]. Por exemplo, crianças que vivem em regiões que sofrem inundações regulares, têm medo da água. Isso não era para acontecer”, comenta. Relatórios do Unicef já indicaram que as principais vítimas da crise climática são as crianças, sobretudo durante a primeira infância.
Pontes descobriu que a intoxicação da neta de Zé Maria se deu pelo sangue dos pais, mesmo que Márcia nunca tenha trabalhado no campo, ela e seu marido agricultor estavam intoxicados. Endocrinologista pediátrico, Marcelo Cavalcanti explica que “pesticidas organofosforados podem ser absolvidos por qualquer parte: por pele, mucosa, deglutição, inalação. A exposição a essas substâncias nesse período mais precoce do desenvolvimento infantil pode ser até no útero da mãe, com absorção via placentária”.
Glifosato: inimigo da infância
Representando mais da metade dos agrotóxicos utilizados no Brasil, o glifosato ainda é o herbicida mais utilizado no mundo, mesmo proibido em diversos países, como em toda a União Europeia. A substância está associada à morte de pelo menos 500 crianças brasileiras anualmente, segundo estudos da FGV e da Universidade de Princeton.
Quando a agrônoma e professora do Instituto Federal do Ceará (IFCE) de Limoeiro do Norte Gizeuda de Freitas iniciou sua pesquisa de mestrado para avaliar os níveis de glifosato presentes na atmosfera da cidade cearense, em 2014, não imaginava que fosse encontrar o que os resultados lhe apontaram: mesmo no centro da cidade, distante cerca de 20 quilômetros da Chapada, a atmosfera estava contaminada. Seu trabalho foi um dos primeiros a diagnosticar a poluição de agrotóxicos em Limoeiro.
“Coloquei três aparelhos em três regiões diferentes do município, todos três resultaram níveis de glifosato no ar”, revela Gizeuda. “O glifosato mata toda a vida que está na terra antes mesmo dela brotar, obviamente não vai fazer bem em contato com seres humanos.”
Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc), da Organização Mundial da Saúde (OMS), classificou o glifosato como “provavelmente cancerígeno para humanos“.
Silvia Brandalise, médica pediatra especialista em neoplasias infantis, explica que o câncer é uma doença multifatorial. “Não dá pra saber se foi isso que deu o câncer, ou se foi a radiação solar em excesso, ou se foi o raio ultravioleta que ele recebeu quando fez muito raio-x de tórax. E para o doente não faz sentido nenhum, só leva ainda mais sentimento de responsabilidade.”
No entanto, a especialista também evidencia que os agrotóxicos com derivados de benzeno, como o glifosato, danificam o DNA e podem trazer uma série de problemas aos seres vivos – plantas, bichos e, claro, seres humanos, principalmente em crianças de zero a seis anos, já que o desenvolvimento de seu organismo ainda não se deu por completo.
“O nosso material genético é essencial para o nosso pensar, nosso sentir, nosso viver, para o funcionamento de todos os órgãos. Tudo que danifica o material genético gera um problema no ser vivo. A danificação pode ser em todos os aparelhos e sistemas que tem no nosso corpo. Hoje já tem uma série de publicações relacionando o autismo à intoxicação pelo glifosato”, detalha Brandalise.
Brasil, Chapada do Apodi e agrotóxicos
Desde 2009, antes mesmo da morte de Zé Maria, Limoeiro do Norte foi a primeira cidade do país a proibir a pulverização aérea. Em 2018, o Ceará aprovou a lei que proibia a mesma prática em todo o estado, de autoria do deputado Renato Roseno (Psol-CE). Outros estados do país, como Mato Grosso do Sul e Pará, estão em discussão para replicar a proibição.
Uma das principais iniciativas que mapeavam a intoxicação de indivíduos por agrotóxicos no Brasil minguou. As últimas publicações do Sistema Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas (Sinitox) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), são de 2018. A direção do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT Fiocruz), que coordenava o Sistema, reiterou “a importância do Sinitox para o SUS e para a população. A retomada do projeto está nos planos do Instituto e já há conversas para determinar a melhor forma de reativá-lo, mas ainda sem prazo definido”.
Em contrapartida, de 2015 a 2022, o número de agrotóxicos permitidos no Brasil só aumentou, segundo dados da Coordenação-Geral de Agrotóxicos e Afins (CGAA) do Ministério da Agricultura. 2023 foi o primeiro ano em que o número caiu, mas, ainda assim, continua sendo o terceiro maior da série histórica.
Mesmo longe de ser um dos estados mais produtivos do agronegócio no Brasil, o exemplo do Ceará é um retrato da problemática dos agrotóxicos que afeta todo o país. Em Limoeiro do Norte, Márcia Xavier mostrou, à reportagem do Brasil de Fato, uma carta aberta escrita por Zé Maria menos de dois anos antes de sua morte. “O futuro dos nossos filhos e netos será muito triste, não temos para onde ir. Riqueza hoje, lástima e miséria depois”, dizia um dos trechos. “Quando a Sofia foi diagnosticada, eu fiquei me perguntando ‘meu Deus, será que vai acontecer mesmo aquilo que papai dizia'”
*Esta reportagem teve o apoio da fellowship sobre primeira infância do The Dart Center for Journalism and Trauma, da Escola de Jornalismo da Columbia University.