‘Ausência de regulamentação da terceirização é a possibilidade de se aplicar o direito do trabalho do inimigo’, afirma especialista

Brasil de Fato

O mestre e doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) Marthius Sávio Cavalcante Lobato fala do atraso civilizatório e a violação da dignidade humana promovidos pela ausência da regulamentação da terceirização, desencadeada na esteira da reforma trabalhista. Ele participou, na última sexta-feira (18), do Seminário “Os desafios da terceirização”, que ocorreu no auditório do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, em Porto Alegre.

“A ausência de regulamentação da terceirização é a possibilidade de se aplicar o direito do trabalho do inimigo”, resume o advogado que atua nos tribunais superiores em Brasília. “É preciso reinstituir a proteção da dignidade humana da classe trabalhadora na Constituição”, defende o autor dos livros O Valor Constitucional para a Efetivação dos Direitos Sociais do Trabalho e A Reconstrução da Jurisdição Constitucional: A Garantia Constitucional dos Direitos Fundamentais Sociais.

O Brasil resgatou, em 2023, 3.151 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Só em agosto de 2024, foram libertos 593 trabalhadores nessa situação, e o número de auditores fiscais do trabalho está no menor nível em 30 anos, segundo o sindicato que representa a categoria.

O professor universitário participou da mesa Conceitos fundamentais e lacunas na regulamentação da terceirização no setor privado. Como pesquisador, integra os grupos Trabalho, Constituição e Cidadania e Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo, ambos da UnB.

Confira entrevista Lobato:

Brasil de Fato RS – Por que o Brasil precisa debater a terceirização?

Marthius Sávio Cavalcante Lobato – Com a ruptura do texto da Constituição pontuada pela reforma trabalhista e acrescentada pelas interpretações do Supremo Tribunal Federal, o debate da terceirização é fundamental para reconstruir os princípios constitucionais sociais e reinstalar esses princípios que foram tão disputados no processo da Constituinte.


“Não existe nem um ganho com a terceirização quando ela impõe uma forma e uma maneira de trabalho que não protege a dignidade humana” / Foto: Divulgação/MTE

Que lacunas legais há na terceirização e os impactos disto sobre as relações de trabalho?

A reforma trabalhista liberal impôs esta terceirização geral e irrestrita, aplicando como princípio básico de proteção o mercado de trabalho. Portanto, violando os direitos humanos fundamentais da classe trabalhadora.

Uma das lacunas é exatamente a ausência de proteção de formas coletivas. Nós sabemos que o direito coletivo existe para proteger o direito individual, e o direito individual só existe porque é protegido por direito coletivo. A reforma trabalhista, ao não regular uma forma de proteção coletiva nas relações de trabalho, acaba gerando a precarização, a violação da dignidade humana e a ausência de efetividade dos direitos sociais do trabalho.

Quais os reflexos mais nefastos da terceirização no setor privado?

A total desproteção do meio ambiente de trabalho, com jornadas extenuantes, condições de saúde e segurança do trabalho aviltantes, remuneração insuficiente, uso de trabalho infantil, trabalho em condições a escravo. Esse conjunto de precarização e de ausência de proteção ao trabalho decente é o reflexo mais nefasto para a dignidade humana do trabalhador.

Não existe nenhum ganho com a terceirização quando ela impõe uma forma e uma maneira de trabalho que não protege a dignidade humana

Quais são os maiores prejuízos aos trabalhadores/as com a terceirização?

Violação à dignidade humana da classe trabalhadora igualando à mercadoria. Isto é um retrocesso em que se retorna ao século XIX, quando o trabalho humano era escravo. Esse é o grande prejuízo que se tem com a terceirização.

Há algum ganho para o setor laboral com a terceirização?

Não existe nenhum ganho com a terceirização quando ela impõe uma forma e uma maneira de trabalho que não protege a dignidade humana. Ainda que queira aumentar os lucros do capital, isso atinge diretamente a proteção dos direitos humanos que vem sendo a busca do século XXI.

Como as MEIs têm sido usadas neste cenário?

As MEIs têm sido utilizadas como uma forma de afastar a proteção coletiva da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, com uma narrativa de que haverá aumento de renda dessa trabalhadora ou trabalhador. Isto no pequeno e médio prazo se demonstra que o que há é a violação da dignidade humana.

O que o senhor destacaria como fundamental neste debate?

Debates como os propostos neste seminário são importantes para demonstrar a prioridade de restabelecer a proteção coletiva. Ou seja, que a partir de uma relação – não só interna como externa dentro da proteção coletiva – é que vamos restabelecer, reinstituir na Constituição, a proteção da dignidade humana da classe trabalhadora.


Da Redação