Atuação da Aneel no apagão em SP põe pressão sobre modelo das agências reguladoras
Brasil de Fato
O apagão que deixou milhões de paulistanos sem luz há dez dias colocou o trabalho da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em xeque. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou a acusar o órgão de não cumprir seu dever de fiscalizar a Enel, distribuidora de energia de São Paulo, e começou a negociar uma revisão do trabalho de todas as agências reguladoras do país.
Essas agências surgiram no final do anos 90, durante o processo de privatização de serviços públicos implementado pelo governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Naquela época, prevaleceu a ideia de que serviços de telecomunicações, produção de medicamentos, fornecimento de energia elétrica e de outros setores deveriam ser prestados por companhias privadas. Caberia ao Estado regular o trabalho delas por meio de órgão técnicos especializados, as chamadas agências reguladoras.
Na esteira desse processo, além da Aneel, surgiram a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entre outras.
Com a criação dessas agências, a União, de certa forma, “terceirizou” para as agências o poder de legislar sobre determinados setores econômicos. Chegou-se a uma conclusão de que o Executivo e o Legislativo não deveriam se ocupar tratando de regulamentos, portarias e normas sobre cada setor. Seria mais produtivo ter um quadro técnico trabalhando nessas questões específicas para cada segmento.
Cerca de 30 anos depois, especialistas alertam que as agências se distanciaram demais do poder público e foram “capturadas” pelo setor privado. Assim, elas “legislam” em prol do interesse de empresas e são fracas para atender o interesse público. O apagão em São Paulo seria resultado disso, mas não um caso isolado.
“Isso é um problema no mundo todo”, afirmou a economista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Clarice Ferraz. “As agências acabam ficando mais próximas das empresas do que dos consumidores. Não necessariamente criando regras para estímulo à concorrências, mas sim zelando para que sistemas funcionem.”
Ferraz também é diretora do Instituto Ilumina, focado em acompanhar o desempenho do setor elétrico nacional. Segundo ela, no caso desse segmento, a agência reguladora encarregada não só está mais próxima das empresas do que deveria como também está tão atarefada que já não dá conta de fiscalizar as companhias de maneira adequada.
“A Aneel está com dificuldade de fiscalizar o serviço na ponta. É muita coisa. Não tem efetivo suficiente”, afirmou ela.
Ainda antes do apagão, a agência já havia informado que trabalha hoje com “déficit crônico” do seu efetivo. Teria 557 funcionários, 92 a menos do que há dez anos. A falta de trabalhadores teria sido um dos motivos da greve de servidores deflagrada neste ano.
Tal greve, aliás, não atingiu só a Aneel, mas todas as agências, e só foi encerrada após um acordo com o governo para reajuste de 27% nos salários dos trabalhadores, que será pago de forma parcelada em 2025 e 2026.
Vale a pena
Segundo Ferraz, a dificuldade de se fiscalizar o setor elétrico é tamanha que existe dúvida se uma agência reguladora daria conta do trabalho. Além disso, se valeria a pena pagar por esse serviço.
“Privatizamos os serviços, mas a estrutura estatal que você tem que criar para fiscalizar o serviço é tão custosa que isso pode não valer a pena”, disse ela. “É questionável.”
Antes do serviço de energia brasileiro passar a ser prestado predominantemente por empresas privadas, não era necessário manter tamanha estrutura de regulação e fiscalização. A pressão sobre todo o funcionamento do sistema recaia sobre o governo, diretamente. Esse mesmo governo agia para regular o sistema por meio de lei, mas também concorrendo contra o setor privado por meio de estatais.
Ferraz já defendeu em entrevista ao Brasil de Fato que o governo considere voltar a atuar no setor de distribuição de energia levando em conta a crise na Enel. “Poderia ser criada uma experiência inovadora. Uma inteligência estatal para a distribuidora de energia do futuro do país.”
Ikaro Chaves, engenheiro eletricista e ex-funcionário da Eletrobras, também já defendeu essa posição. “Estamos vendo a falência do modelo do setor elétrico brasileiro gestado lá nos anos 90”, afirmou, também ao BdF. “O governo precisa voltar a atuar diretamente no setor.”
A atuação do governo em outros setores, como telecomunicações e na produção de remédios e vacinas, por exemplo, também poderia ser útil para dinamizar esses segmentos, considerando o raciocínio de Ferraz e Chaves.
Proximidade questionada
Outros especialistas ouvidos pelo BdF, no entanto, apontam que o controle do governo sobre setores econômicos também cria riscos. Durante a pandemia, por exemplo, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tentou barrar a aprovação de vacinas contra o covid-19 no país. A independência da Anvisa é que garantiu o avanço da imunização.
Hoje, os diretores de agência reguladoras no Brasil têm mandatos fixos não-coincidentes com o do presidente da República –ou seja, não podem ser exonerados a partir da vontade do governante do momento e se mantêm no poder mesmo após a eleição.
Na Aneel, os quatro atuais diretores foram indicados por Bolsonaro. Há uma vaga aberta, mas Lula ainda não indicou um novo diretor ao órgão. “O espaço tem que ser ocupado”, reclamou Ferraz. “Precisa indicar alguém que entende do assunto e com interesse público.”
Antes dessa indicação, o governo estuda propor a criação de um órgão para supervisionar as agências e impor mais transparência ao trabalho delas. Isso dependeria de aprovação de projetos sobre o assunto pelo Congresso.