Avanço de extremistas nas eleições regionais da Alemanha desloca o centro político para a direita

Brasil de Fato

Em 27 de fevereiro de 2022, o primeiro-ministro Olaf Scholz usou uma expressão para indicar mudança de era: Zeitenwende. Na visão dele, a invasão da Ucrânia pela Rússia interrompeu drasticamente uma relação de interdependência pacífica com a Rússia que havia durado mais de cinquenta anos.

Um aspecto crucial dessa relação foi o fornecimento ininterrupto de petróleo, gás e carvão russo de forma confiável, econômica e de boa qualidade, o que se tornou um dos pilares da força da indústria alemã. Os gastos com defesa haviam caído de cerca de 4% do PIB no início do governo Willy Brandt, no final da década de 1960, para menos de 1%.

Era uma mudança brusca para a qual a Alemanha não estava preparada. Não havia planos de contingência, nem sequer um terminal para receber gás natural liquefeito, caso fosse necessário. Essa mudança radical veio em cima de outros desafios ao modelo alemão, em particular a concorrência da tecnologia e manufatura chinesa, as crises climáticas e o impacto dos fluxos migratórios.

Scholz não poderia imaginar que dois anos e meio depois outro terremoto confirmaria o despreparo da Alemanha para lidar com os novos tempos: pela primeira vez, um partido da extrema direita se tornou o maior partido em uma eleição estadual, no caso, na Turíngia, na Alemanha Oriental, com a Alternativa para a Alemanha (AfD).

É um estado pequeno, com pouco mais de 2 milhões de habitantes, ou seja, 2,5% da população da Alemanha, mas o impacto psicológico não poderia ser maior. Vale lembrar que o partido nazista de Adolf Hitler fez sua primeira coligação para entrar em um governo estadual em 1929 justamente no Estado da Turíngia. Outro detalhe é que, nesse Estado, não foi uma versão mais branda da AfD, mas sim mais radical, que liderou a campanha com a figura controversa de Björn Höcke.

Höcke é do grupo Der Flügel, considerada um agrupamento extremista de direita pelo órgão federal de proteção à Constituição da Alemanha e pelas autoridades de segurança da Turíngia. Ele também participou da Pegida, um movimento de agitação militante contra a suposta islamização do Ocidente.

A AfD foi criada em 2013 e entrou pela primeira vez no parlamento federal em 2017. Quando a extrema direita começou a se manifestar com força em outros países da União Europeia, imaginava-se fora e dentro da Alemanha que o peso da história inibiria o crescimento dessas forças.

Ironicamente, Höcke é professor de história, e o que apareceu na Alemanha foi uma extrema direita tão radical que o partido foi expulso do agrupamento europeu de partidos de extrema direita, na época chamado de Identidade e Democracia, diante das declarações do líder da chapa da AfD, Maximilian Krah, para as eleições europeias, que relativizou o caráter criminoso da força paramilitar nazista, a SS.

O partido defende a expulsão sumária de “migrantes ilegais” e tem um discurso forte de defesa da cultura e identidade alemã, agitando contra o multiculturalismo e, especificamente, contra o islã e suas manifestações na Alemanha. Pautas semelhantes às de outros partidos de extrema direita, mas formuladas e apresentadas de forma mais agressiva para o contexto alemão. Por outro lado, o partido se diferencia ao defender, no campo econômico, uma pauta puramente neoliberal.

Alice Weidel, co-presidente da AfD, se refere a política de Thatcher como modelo econômico. É importante lembrar que o neoliberalismo na Alemanha sempre veio com concessões ao estado de bem-estar e aos direitos sindicais. Weidel defende a redução dos impostos, a abolição do imposto sobre herança e é contra o salário mínimo.

Lembrando que a extrema direita na França vem ganhando terreno exatamente ao abraçar pautas sociais, como a defesa da aposentadoria e o nacionalismo econômico. Alice Weidel tem outra curiosidade que a diferencia das demais lideranças de extrema direita europeia: ela viveu seis anos na China trabalhando no setor financeiro, domina o mandarim e escreveu sua tese de doutorado sobre o sistema de aposentadoria chinês. Ela vê na China um país que abraçou o mercado e, ao mesmo tempo, sabe proteger suas fronteiras.

No início, a AfD tinha como principal pauta uma política anti-europeia, inclusive pela volta do marco alemão. O crescimento do partido, no entanto, não se deu por suas ideias na área econômica, mas pelo radicalismo contra a migração. Em 2015, diante do grande fluxo de migração provocado pelas guerras na Síria e no Iraque, o governo Merkel fez um gesto surpreendente e generoso ao declarar que a Alemanha tinha, sim, condições de acolher os refugiados com a frase Wir schaffen es (nós conseguiremos).

Naquele ano, cerca de 1 milhão de refugiados entraram no país. O processo de acolhimento gerou problemas em termos de habitação e saúde, que precisavam de tempo para serem resolvidas, mas foram prato cheio para a AfD se posicionar e verbalizar o descontentamento de parte da população com essa política de forma agressiva e xenofóbica. Vale destacar que o partido mobilizou, desde o início, jovens com grande capacidade de operar as tecnologias digitais. A AfD se tornou o partido na Alemanha de longe com maior presença nas redes sociais.

Em 2021, porém, as coisas pareciam estar se reequilibrando. Nas eleições federais, o Partido Social-Democrata (SPD) ganhou mais de 5% em relação a 2017, tornando-se o maior partido após 16 anos de liderança de centro-direita (CDU/CSU) com Angela Merkel. O centro-direita caiu de 33% para 24,1%, e a AfD perdeu mais de dois pontos, caindo de 12,6% para 10,3%. Além do SPD, o grande vencedor foi o Partido Verde, que saltou de 8,9% para 14,8%. A AfD recuou muito devido à perda de seu discurso diante da pandemia de Covid-19.

O PIB da Alemanha cresceu 3,2% em 2021 e as expectativas eram de um crescimento de 4% em 2022. No entanto, com o impacto da guerra na Ucrânia, o crescimento foi de apenas 1,8%. O aumento do custo de energia gerou problemas distributivos graves e contradições temporárias na política de transição energética.

O governo perdeu o rumo, e as eleições europeias deste ano já serviram como um termômetro para a reviravolta em relação às eleições nacionais de 2021, com uma queda acentuada de todos os três partidos da coligação de governo e ganhos significativos para o centro-direita e a AfD. Esta última conseguiu, de forma inesperada, superar o SPD e ficar em segundo lugar com quase 16%, embora ainda distante do CDU/CSU, que obteve mais de 30%. É pouco provável que o quadro de desgaste se reverta até as eleições federais em setembro do próximo ano.

A queda dos três partidos da coligação de governo nas eleições de domingo na Turíngia e na Saxônia não foi, portanto, surpresa. O mesmo cenário deve se repetir em Brandemburgo, outro estado na Alemanha Oriental, daqui a uma semana. No entanto, havia uma esperança por parte das forças progressistas de que o resultado da AfD fosse menos expressivo.

Os Verdes não ultrapassaram a barreira de 5% e saíram do parlamento da Turíngia. Os Liberais (FDP) também perderam sua representação em ambos os parlamentos. Outro ponto de destaque é a alta participação nessas eleições. Em Turíngia, o absenteísmo já vinha caindo de 47,3% em 2014 para 35,1% em 2019 e agora ficou em 26,4%, a menor porcentagem desde 1994, no início da reunificação. Na Saxônia, os números foram semelhantes. Isso pode indicar que a extrema direita avançou sobre uma população que estava desiludida com a política e havia desistido de votar.

É importante entender que o resultado das eleições estaduais de domingo reflete, ao mesmo tempo, uma tendência geral no país (o desgaste do governo e o crescimento simultâneo do centro-direita e da extrema-direita), mas deve ser lido também no contexto específico dos estados da ex-Alemanha Oriental (a República Democrática Alemã), onde, passados mais de trinta anos da reunificação, uma parte expressiva da população ainda se sente como cidadãos de segunda classe. Muitos jovens migraram para regiões na parte ocidental do país em busca de melhores oportunidades.

Outra face dessa especificidade da Alemanha Oriental é a forte presença do partido de esquerda (Die Linke), visto como herdeiros do antigo partido comunista da Alemanha Oriental, que, nas eleições estaduais anteriores na Turíngia, havia ficado em primeiro lugar com 31% dos votos, mais de 7% à frente da AfD. Foi essa esquerda, liderada por Bodo Ramelow, que governou o estado em coalizão com o SPD e os Verdes.

Além de enfrentar o mesmo desgaste de governar em tempos difíceis que o governo federal, Die Linke sofreu outro revés: uma de suas principais lideranças, Sahra Wagenknecht, decidiu rachar e criar sua própria lista (BSW). Ela se diferencia do antigo partido ao abraçar duas preocupações reais para parte das classes populares: o cansaço com os gastos com a guerra na Ucrânia, que parecem cada vez mais inúteis, e a defesa de uma política restritiva e seletiva de migração.

Sua estreia nas eleições europeias foi surpreendente; a BSW alcançou 6% em nível nacional. Agora, a BSW se posicionou de forma estratégica em ambos os estados onde se apresentou pela primeira vez. A BSW alcançou quase 16% na Turíngia, à frente do Die Linke, que caiu para 13,1%. Na Saxônia, chegou a quase 12%, enquanto o Die Linke teve menos de 5%. A BSW é um movimento novo, difícil de enquadrar em termos mais tradicionais; alguns o chamam de populismo de esquerda.

A curto prazo, a grande questão é quem vai governar os dois estados. Em particular, na Turíngia, onde a AfD ficou em primeiro lugar, ela reivindica o poder de formar e liderar um novo governo. No entanto, a CDU/CSU deixou muito claro que, em nenhuma hipótese, formará um governo em nível estadual ou nacional com a AfD.

Também exclui um governo com o Die Linke. Há, porém, uma grande preocupação sobre até quando o centro-direita será fiel ao cordão sanitário contra a extrema direita. Embora em um contexto diferente, há pouco tempo o centro-direita nos Países Baixos, país vizinho, rompeu seu compromisso e formou, no ano passado, pela primeira vez, um governo com a extrema direita, que havia ficado em primeiro lugar. Por enquanto, isso gera três peculiaridades: 1) o partido de Sahra Wagenknecht, que acaba de ser formado, deverá participar dos dois governos e, 2) mesmo assim, na Turíngia, a única aliança de governo possível (CDU/CSU, BSW e SPD) terá apenas 44 dos 88 deputados, faltando 1 para ter um mínimo de tranquilidade para governar; 3) na Turíngia, a AfD terá mais de 1/3 dos deputados e poderá bloquear e complicar qualquer decisão que exija voto qualificado.

O que esperar para as eleições nacionais daqui há um ano? O paradoxo é que a AfD, fora do governo, tende a radicalizar e capitalizar os votos de protesto, ao mesmo tempo que a democracia alemã não pode conviver com um partido de extrema direita no governo, mesmo em um estado menor. Assim, é provável que a AfD chegue às eleições do próximo ano com força para chegar perto de 20%.

O grande vencedor das eleições tenderá a ser o centro-direita, que, para se afirmar, incorporará cada vez mais algumas pautas da AfD e da BSW, ou seja, se distanciará cada vez mais do partido de centro de Angela Merkel. É do interesse dos partidos de centro-esquerda e centro-direita, e para a Alemanha como um todo, que se chegue o mais rápido possível a um tipo de acordo na Ucrânia, mas essas forças não têm como mudar sua posição de apoio a Zelensky. Em todo caso, é muito improvável que o SPD, os Verdes e os Liberais consigam reverter sua queda; na melhor das hipóteses, talvez consigam estancá-la. Será interessante ver como a BSW evolui participando dos governos estaduais ao lado da CDU/CSU e do SPD.

 

*Giorgio Romano Schutte é Professor Associado em Relações Internacionais e Economia Política Mundial da UFABC, membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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