‘O clima mudou, o Congresso Nacional também precisa mudar’, afirma diretora da SOS Mata Atlântica

Brasil de Fato

Em reunião realizada no Palácio do Planalto, na última terça-feira (17), os representantes dos três Poderes da República divergiram sobre as ações e responsabilidades sobre a crise climática em curso no país atualmente, que envolve recordes seca e queimadas.

Logo de início, como um chamado de atenção, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recordou o Pacto pela Transformação Ecológica, lançado em conjunto pelo Executivo, Legislativo e Judiciário no dia 21 de agosto, e que define a responsabilidade compartilhada no enfrentamento à emergência climática e seus efeitos.

“A gente quer compartilhar uma solução para esse problema do clima. Essa reunião aqui é para a gente tomar algumas atitudes e algumas atitudes que não estavam previstas até hoje”, disse o presidente. 

No entanto, os chefes do Legislativo parecem não concordar. O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), refutou o argumento de que seria necessário fazer mudanças na lei para endurecer o controle ambiental e as penas para quem pratique crimes contra a natureza.  

“Quando há situações de crise como essa é natural que haja muito voluntarismo no âmbito do Legislativo, e o presidente Arthur Lira, na Câmara, compreende isso, e eu no Senado compreendo isso, de buscas de soluções que aparentemente sejam milagrosas: um aumento excessivo da combinação de penas, a inclusão desse tipo de crime como crime hediondo. E nós temos que conter e buscar um equilíbrio na formatação de lei sobre pena e descambar para um populismo legislativo que não solucionará o problema”.  

Pacheco considerou os incêndios que o país tem registrado como algo “marginal”, mesmo que já tenha afetado mais de 18 milhões de hectares, o equivalente ao estado do Paraná, e descartou que a situação tenha relação com os dispositivos legais de que o país possui ou não para enfrentar a crise.  

O argumento foi logo refutado pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Herman Benjamin. “Se os remédios jurídicos que nós temos fossem realmente efetivos, nós não daríamos na enfrentando a crise, pelo menos na dimensão que nós temos”, contrapôs o magistrado.  

Benjamin defendeu uma “modificação cirúrgica” na lei complementar 140, de 2011, que redefiniu as atribuições do governo federal na atuação sobre áreas que não pertençam à União. “Rigorosamente falando, as competências do governo federal foram muito reduzidas por esta lei complementar 140. É importante nós dizemos que, pela letra seca da lei, o governo federal deveria estar combatendo os incêndios apenas em terras públicas federais. E daí é muito impróprio se acusar o governo federal de não estar fazendo o trabalho na dimensão que se pretende quando a legislação que nós temos impede e amarra as mãos do próprio governo federal”, afirmou Benjamin.  


Herman Benjamin (à esquerda), presidente do STJ; à direita, Lula, com o vice-presidente Geraldo Alkmin e os chefes do Legislativo, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco / Ricardo Stuckert / PR

Código Florestal 

Em sua intervenção, Arthur Lira se posicionou contrário a mudanças no Código Florestal brasileiro, que exaltou como sendo “a lei mais rígida, mais dura, mais forte” de todo o mundo. Apesar de querer evitar modificações que endureçam as leis ambientais no Brasil, o presidente da Câmara ignorou, em sua fala, outras mudanças que vêm sendo feitas e propostas sobre o Código Florestal, no de flexibilizar – e não endurecer – as normas de controle e preservação ambiental.  

Na avaliação de Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da organização SOS Mata Atlântica, é certo dizer que a legislação ambiental brasileira foi construída em diálogo com a sociedade e trouxe elementos importantes para a preservação ambiental no Brasil. No entanto, é o próprio Congresso Nacional que tem promovido mudanças nocivas na lei. 

“De fato, [a lei] era muito boa, mas ela vem sendo praticamente solapada por esse Congresso Nacional, que é um Congresso que quer flexibilizar, que quer anistia aos desmatadores, quer anistia de danos ambientais e que não está conectado com a realidade”, avalia. 

Um exemplo disso é o PL 364/2019, que busca flexibilizar as regras para utilização de áreas de vegetação nativa, eliminando a proteção dos campos nativos na Mata Atlântica. O projeto está pronto para análise do plenário. “Parece para algumas pessoas uma fitofisionomia que não tem importância, porém, essas áreas são essenciais para a recarga dos aquíferos, para os recursos hídricos, para biodiversidade, para segurança climática. É um dos maiores retrocessos dessa última década”, avalia Ribeiro.  

‘Pacote da Destruição’

Durante a reunião entre os Poderes, o presidente da Câmara ainda pintou um cenário bem diferente da realidade do Congresso Nacional. “A gente tem tentado votar matérias que fortaleçam essa questão ambiental, inclusive com muita ênfase, nesses últimos anos”, disse Arthur Lira. No entanto, movimentos sociais e ambientais denunciam que o Legislativo tem avançado na direção contrária da proteção ambiental e do cuidado com a natureza.  

É o caso da lei 14.785, aprovada em 2023, que ampliou a liberação de agrotóxicos no país, que já é o maior consumidor de insumos químicos para uso agrícola em todo o mundo. A exemplo dela, outros projetos, intitulados pelos movimentos ambientalistas como “Pacote da Destruição”, tramitam no Congresso.

Segundo o Observatório do Clima, tramitam 25 projetos e três propostas de emenda à Constituição (PECs) que afetam direitos consagrados em temas como licenciamento ambiental. 

Entre eles está o PL 5.822, de 2019, que tramita na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, e quer viabilizar o licenciamento ambiental de lavras garimpeiras de pequeno porte em Unidades de Conservação de Uso Sustentável do tipo Floresta Nacional. 

Outro projeto que pode agravar ainda mais a situação das queimadas no Brasil é o PL 2642/20, que foi aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados em abril deste ano, e que permite aos imóveis rurais adotarem medidas simplificadas de prevenção e combate a incêndio.

Já no Senado Federal, o PL 3334, de 2023, que reduz reserva legal em áreas de florestas da Amazônia, tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). O PL 2374/2020, conhecido como o “PL da anistia para desmatadores“, permite a regularização de propriedades rurais que não respeitem os limites mínimos de reserva legal em razão de desmatamento de vegetação nativa realizadas entre 22 de julho de 2008 e 25 de maio de 2012. A proposta está em discussão na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. 

Ainda no Senado, o PL 355/2020, que altera o Código de Mineração e facilita a atividade garimpeira, está na pauta da Comissão de Serviços de Infraestrutura.

Defesa do agronegócio 

Durante o encontro no Palácio do Planalto, os presidentes do Legislativo fizeram uma defesa enfática do agronegócio brasileiro, apontado por diversas organizações não-governamentais (ONGs) e ambientalistas como o principal vilão do meio ambiente brasileiro. Segundo a rede MapBiomas, a área de pastagem cresceu 79%, e a de agricultura aumentou 228% nos últimos 39 anos no Brasil.  

“Nós não podemos achar que é vergonhoso sermos o maior produtor de soja do Brasil, o maior do mundo, o maior produtor de celulose, de açúcar, de gado bovino, de petróleo. Nós temos que ter orgulho do nosso desenvolvimento econômico”, defendeu o senador Rodrigo Pacheco, que se mostrou preocupado com os efeitos da atual crise sobre “imagem do Brasil” no mundo e as consequências para a economia.  

O ministro Herman Benjamin afirmou, no entanto, que a imagem do Brasil já se vê comprometida, na medida em que os incêndios têm afetado diversos setores da economia, como o turismo e até mesmo o agronegócio. “Os ministros da agricultura do G20 se reuniram Cuiabá, quase que usando máscara, e o ministro [Carlos] Fávaro, que queria mostrar é o esplendor da agricultura moderna brasileira, foi obrigado a explicar o que estava ocorrendo com aquela fumaça”, relatou.  

Benjamin propôs ainda o impedimento de que os créditos rurais sejam acessados por incendiários e desmatadores e que aqueles já concedidos tenham o vencimento antecipado, como uma forma de punição ao crime.  

Embora reconheça a pujança econômica gerada pelo agronegócio e a capacidade de geração de riquezas de modo sustentável, Ribeiro afirma que o Congresso Nacional está dominado por setores do agro que não têm compromisso com a proteção dos biomas. “Uma grande parcela desse agronegócio é essa parcela que quer flexibilização da legislação, que quer anistia aos desmatadores”, considera. 

Demarcação de Terras Indígenas 

Na reunião entre autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, defendeu o avanço na demarcação de terras indígenas (TIs) como uma forma de fortalecer os mecanismos de proteção ambiental e combate aos crimes.  

Segundo o relatório do MapBiomas, as TIs ocupam 13% do território brasileiro, com 112 milhões de hectares, e onde se concentra 19% da vegetação nativa no Brasil. Essas são as áreas com maior nível de preservação, tendo perdido apenas 1% de sua vegetação nativa nos últimos 39 anos. 

Na contramão, o Congresso Nacional aprovou a lei 14.701, de 2023, que estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas no Brasil, considerando legítimas apenas aquelas áreas que permaneciam ocupadas por povos tradicionais até a data da promulgação da Constituição Federal, em 1988.

A tese do marco temporal foi derrubada por decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de 2023. Em dezembro, o Congresso Nacional aprovou a lei que contraria a determinação do Supremo, que logo foi judicializada, sob o argumento de inconstitucionalidade.

Prevendo uma decisão desfavorável aos ruralistas, os parlamentares articulam a aprovação de uma emenda constitucional, a PEC 48/2023, para acrescentar a tese do marco temporal ao artigo 231 da Constituição. Em outra frente, a PEC 59/2023 quer atribuir ao Congresso a competência sob a demarcação de terras indígenas, que hoje está sob responsabilidade do Ministério da Justiça.  


Indígenas protestaram mais de uma vez na capital federal contra a tese do marco temporal / Joédson Alves/Agência Brasil

Sobre as ações necessárias para o enfrentamento da emergência climática, a diretora do SOS Mata Atlântica afirma que é preciso ir além das medidas que tem sido adotadas pelo governo federal.  

“Em primeiro lugar [a gente defende] a não tramitação desse ‘pacote da destruição’, que tem esses projetos de lei, que a gente aponta que são retrocessos para legislação ambiental brasileira. Em segundo lugar, que as autoridades, principalmente os governos dos estados, deixem público, esclareçam para a sociedade, quem está orquestrando essas queimadas no país. Porque isso não é normal, isso foi uma coisa orquestrada, é uma ação criminosa”, finaliza. 

Da Redação