‘É sempre urgente um filme como Pasárgada’, afirma Humberto Carrão sobre estreia de obra de Dira Paes

Brasil de Fato

Em meio à resistente Mata Atlântica do interior do estado do Rio de Janeiro, uma ornitóloga pesquisa a floresta e tenta caminhos para traficar pássaros do bioma para um alemão. Parece mais uma denúncia de exploração da natureza do Brasil de Fato, mas, desta vez, é a trama do filme Pasárgada, que estreou, nesta semana, no circuito nacional de cinema.

O longa é o primeiro dirigido e roteirizado por Dira Paes, que também é uma das protagonistas do filme, interpretando a ornitóloga Irene. Ela contracena com Manuel, um mateiro especialista em “falar” com os pássaros e que ganha vida pela atuação de Humberto Carrão.

Nesta edição do Bem Viver, programa do Brasil de Fato, traz um papo com o artista sobre a participação na produção e outros projetos pessoais, quem sabe também com estreia de direção e roteiro.

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“Tem uma frase que eu adorava repetir durante o processo do filme, que é do Guimarães Rosa: “passarinho abaixou, o voo tá pronto”. Isso se reflete na artista se transformando na personagem Irene, que está vivendo um momento importante, procurando Pasárgada, ao mesmo tempo, em que se relaciona com tudo o que viveu no passado. Foi também a transformação de uma atriz em diretora. Isso foi muito bonito de viver de perto”, conta Carrão.

Filmado no Arraial do Sana, na região serrana carioca, Pasárgada não apenas conta uma história de redescoberta pessoal de Irene a partir da sua relação com Manuel, mas também explora a importância da conexão humana com o meio ambiente, refletindo sobre o impacto das ações humanas na biodiversidade.

Carrão destaca como foi a construção do mateiro junto a Ilson Gonçalves, mateiro da região que dá vida a Ciça na trama. 

“Eu queria que o Manuel fosse aquele personagem que, como Ciça, sabe muito e tem um conhecimento especial, portanto é muito poderoso, mas que resguarda seu espaço. Não são figuras de peito aberto e poderosas nesse sentido. O poder está em outro lugar. Manuel é uma figura difícil de capturar. Às vezes ele se abre, mas muitas vezes se resguarda, e isso o torna um excelente observador da natureza”, explica.

Ele também traz  as lições que o filme traz sobre a natureza e a urgência de preservá-la. “É gratificante que o filme possa ser uma plataforma de discussão dessas questões. Ao mesmo tempo, me dá muito medo de que nunca mais haja um momento em que um filme como esse não seja relevante. Em maio, eram as chuvas. Assim, é sempre urgente um filme como Pasárgada. Espero que possamos ter um momento de calmaria, mas não me parece que isso vá acontecer. O mundo está dando sinais de urgência”, denuncia Carrão.

Confira a entrevista na íntegra

Como foi receber esse convite para participar do filme e quais foram os desafios e potencialidades de trabalhar com uma diretora estreante?

Tem uma frase que eu adorava repetir durante o processo do filme, que é do Guimarães Rosa: “passarinho abaixou, o voo tá pronto”. Isso se reflete na artista se transformando na personagem Irene, que está vivendo um momento importante, procurando Pasárgada, ao mesmo tempo em que se relaciona com tudo o que viveu no passado. Foi também a transformação de uma atriz em diretora.

É bonito isso. Falando em bicho, a Dira é um bicho de cinema. Ela tem muita experiência e um olhar muito especial, com muitos amores, e sabe o que quer. Isso foi muito bonito de viver de perto.

Quando a Dira me ligou no meio da pandemia, lembro perfeitamente do entusiasmo dela em contar essa história. Era uma ideia um pouco óbvia: sair do apartamento em uma cidade grande, no meio da pandemia, e, com toda a segurança do mundo, fazer um filme sobre a natureza e sobre a natureza desses personagens. Foi muito especial. 

Eu embarquei de cara e fui muito feliz em fazer.

O Manuel, que é um grande conhecedor de pássaros, fala com eles literalmente. Quero saber se isso foi inédito para você ou se já tinha vivido essa experiência de se comunicar com a linguagem do assobio? Essa parte do processo de captar o personagem foi algo que você realmente aprendeu ou foi algo que você acabou se deixando levar?

Eu acho a profissão de atriz algo muito lindo, porque você contamina o personagem com suas experiências e ele te contamina também, com coisas que ficam para a sua vida.

Esse Manuel é um exemplo muito especial disso. Meu avô, e eu falo isso no filme, era essa figura que sabia o canto dos pássaros. Ele se chamava Humberto e era um homem que conhecia árvores, frutos e animais. Lembro de mim, pequenininho, ao lado dele, achando aquilo o maior barato, muito especial, uma luz.

Com o tempo, senti um pouco de vergonha de ser tão diferente dele, de não ter uma relação assim com a natureza. Mas é bonito, porque quando a Dira me chama, eu estava justamente nesse momento de ir mais para o mato, buscando me estabelecer lá, e fiquei muito tempo no mato durante a pandemia.

O filme chega num momento em que estou me interessando mais por isso, lembrando da história do meu avô, e, sobretudo, do Ciça (Ilson Gonçalves).

Minha relação com Ciça começou muito antes de filmar. Passei um tempo na fazenda convivendo com ele, olhando atento e pedindo licença para copiar algumas coisas, anotando. Queria que o Manuel fosse aquele personagem que, como Ciça, sabe muito e tem um conhecimento especial, portanto é muito poderoso, mas que resguarda seu espaço. Não são figuras de peito aberto e poderosas nesse sentido.

O poder está em outro lugar. Manuel é uma figura difícil de capturar. Às vezes ele se abre, mas muitas vezes se resguarda, e isso o torna um excelente observador da natureza.

Como você vê a relação entre o momento da pandemia, que a Dira menciona como um período de refúgio e reconexão com a natureza, e o atual cenário de desastres ambientais, como as queimadas? Você acredita que realmente aproveitamos a oportunidade de aprender com essas experiências sobre a importância de cuidar do nosso planeta

Acho que é uma vergonha para nós, como sociedade, que tenhamos vivido uma pandemia diretamente relacionada à expansão do homem em relação à natureza e, poucos anos depois, estejamos repetindo os mesmos erros ou cometendo novos.

Ainda somos reféns de um pensamento de que esses problemas não são nossos, de que o mundo é grande e que tudo continuará como está. 

Os sinais são cada vez mais urgentes. Precisamos começar a fazer algo para melhorar. Portanto, respondendo à sua pergunta, acho que é uma vergonha. A impressão que dá é que não aprendemos.

O filme aborda intensamente o contato com a natureza, mas também faz uma forte denúncia sobre o tráfico internacional de animais. O que você acha do fato de que um dos protagonistas desse crime é um estrangeiro, orquestrando toda essa atividade? Isso não poderia ser interpretado como uma simbologia do processo colonial que o Brasil enfrentou por séculos? Mesmo após a independência, continuamos a ver situações semelhantes. Esse aspecto tem relevância na sua interpretação do filme?

Acho que sim. Além disso, o letreiro que informa que o tráfico de animais é o terceiro maior do mundo deve assustar muita gente. Isso ainda ocupa um lugar no imaginário de que é apenas o “ladrão de passarinhos”, o “senhorzinho velhinho” caçador de animais silvestres. Mas não, é uma rede mundial, poderosa e com influência política.

E, ao mesmo tempo, Irene também é uma estrangeira naquele lugar. O Peter é um estrangeiro, um alemão, e Irene também não é daquele lugar. Existem muitas camadas de pessoas de fora interferindo na vida da natureza em um canto.

Isso dialoga com o Brasil de hoje?

Acho que sim. No entanto, é importante entender que isso não significa que o problema está apenas fora, como se fosse algo distante. O mundo tem teias e raízes, e as coisas chegam perto da gente.

Muitas vezes, em relação ao clima, vemos candidatos bem votados que acham que isso é bobagem.

Você considera que o filme serve como um chamariz pertinente para dialogar sobre as ameaças reais que estamos enfrentando atualmente, não apenas em relação à fumaça e fuligem, mas também em contextos como a Amazônia e outros biomas do país?

Acho que sim e fico honrado por isso. É gratificante que o filme possa ser uma plataforma de discussão dessas questões. Ao mesmo tempo, me dá muito medo de que nunca mais haja um momento em que um filme como esse não seja relevante.

Em maio, eram as chuvas. Assim, é sempre urgente um filme como Pasárgada. Espero que possamos ter um momento de calmaria, mas não me parece que isso vá acontecer. O mundo está dando sinais de urgência.

Você acredita que o cinema, o audiovisual e a arte são boas plataformas para conversarmos com as pessoas, mesmo em um mundo tão polarizado nesse aspecto político?

A arte altera a sensibilidade. Ela chama a atenção para coisas que estavam ali o tempo inteiro e que não percebemos. Portanto, a arte é poderosa para nos indicar o que devemos prestar atenção.

Isso se aplica tanto às questões ambientais quanto políticas. A arte é uma forma de conversarmos sobre o mundo que vivemos, contando nossas histórias e conectando as coisas.

Estamos acostumados a um mundo cheio de estímulos e velocidade, e isso faz com que a gente perca a capacidade de relacionar uma coisa com outra. Acredito que a arte é importante para isso.

Humberto, se me permite, gostaria de desviar um pouco das conversas sobre o filme para perguntar sobre outros projetos que você está tocando. Você está se preparando para se lançar como diretor, certo? Pode me contar se essas ideias avançaram e como está a atualização sobre isso?

Esse filme com a Ana Maria Gonçalves é um projeto que eu tenho muito carinho. Eu escrevi dois roteiros com a Ana, justamente durante a pandemia. Primeiramente, é um grande privilégio. Eu sou louco por Um Defeito de Cor. Li várias vezes e isso marcou meu caminho. Fiz cursos com a Ana e tive coragem de chamá-la para escrever um roteiro. Acabamos escrevendo dois. Eu ia para São Paulo, passávamos madrugadas escrevendo, era lindo, mas a pandemia interrompeu um pouco isso.

Agora, tenho outro projeto em andamento e estou muito dedicado a isso, escrevendo e procurando pessoas para estarem comigo. É um roteiro sobre Aracy de Almeida, um filme de ficção sobre os últimos anos dela. Estou muito ansioso para dirigir esse filme.

E essa relação com o samba, especialmente considerando sua presença em diversas rodas, e agora neste filme que destaca uma grande personagem do nosso samba O que te motiva a apostar no samba como tema Pode compartilhar um pouco mais sobre essa conexão?

Não é uma aposta. É um amor. Sou morador do Rio de Janeiro, nasci lá e frequento o samba há muitos anos.

Na verdade, a maioria dos meus amigos e amores são pessoas do samba, músicos. Portanto, não faço isso por um interesse específico.

Meu interesse é algo que vem da vida, é o que me fascina. Sou louco por música, por Rio de Janeiro e pela história da cidade.

Vou para onde gosto de estar, e realmente adoro estar no samba.

E esse filme sobre Aracy de Almeida é uma maneira de exaltar personagens um pouco esquecidos e colocar o samba também como uma forma política, não apenas como expressão de lazer?

Aracy viveu algo muito específico e especial, que não conheço outros paralelos. Para muitos, ela é a maior cantora de samba. Mas o importante é mostrar o tamanho dela.

Ela conviveu com uma certa falta de interesse em relação ao trabalho dela como cantora, ou seja, um certo esquecimento, mesmo tendo vivido um sucesso brutal como jurada de programas de auditório.

É estranho pensar que uma mulher idosa estava no centro do pop. Era incomum nos anos 1980, mas ela era disputadíssima. Essa dualidade na figura de Aracy de Almeida me fascina e me faz querer fazer um

 filme sobre ela, investigar o que ela viveu.

Você comentou sobre o contato com Ciça e a importância do conhecimento que ele traz, mais do que a força. Poderia falar um pouco mais sobre a relevância de trazer personagens como ele, que são verdadeiros salvaguardistas e têm o potencial de enfrentar o caos climático que vivemos? Você acredita que o filme dialoga com essa ideia, ou é mais sobre sua própria relação com esse personagem? Como você vê o conhecimento que recebeu de Ciça e os paralelos com outras grandes lideranças, como as quilombolas e indígenas, no nosso país?

Ciça é uma figura que guarda uma inteligência da natureza muito poderosa. Ele não é passivo; é ativo e compartilha seu conhecimento.

Desde o primeiro momento, fiquei impressionado com seu domínio do lugar onde vive. No filme, é Ciça, e não Manuel, quem percebe o que acontece e paga por isso.

Quando uma figura como Ciça protege aquele lugar e determina limites, isso é uma questão de política e suspense.

Acho que essas figuras são, sim, importantes. É lindo que a Dira tenha convidado Ciça, não apenas para ser nosso guia, mas para estar presente. 

Não vejo a hora da sessão no Sana, junto com as pessoas que construíram o filme e estiveram naquele lugar. O filme só existe porque a Dira se encantou com a beleza do lugar e viu a urgência de fazer um filme que protege esse espaço. É fundamental celebrarmos isso com eles.

E tem mais…

O Bem Viver traz também a arte dos responsáveis por fazerem letras flutuarem em Belém (PA). 

A Dica de Saúde traz a campanha brasileira de prevenção ao suicídio, o Setembro Amarelo. A psicóloga Ivani Oliveira traz a importância falar sobre isso e os caminhos para pedir ajuda.

Tem também dica cultural. O Brasil de Fato lança o documentário Terra Vista sobre a produção de cacau no sul da Bahia em uma área recuperada pelo Movimento Sem Terra (MST). 

Quando e onde assistir? 

No YouTube do Brasil de Fato todo sábado às 13h30, tem programa inédito. Basta clicar aqui.

Na TVT: sábado às 13h30; com reprise domingo às 6h30 e terça-feira às 20h no canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.

Na TV Brasil (EBC), sexta-feira às 6h30.

Na TVE Bahia: sábado às 12h30, com reprise quinta-feira às 7h30, no canal 30 (7.1 no aparelho) do sinal digital. 

Na TVCom Maceió: sábado às 10h30, com reprise domingo às 10h, no canal 12 da NET. 

Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET. 

Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital. 

Na UnBTV: sextas-feiras às 10h30 e 16h30, em Brasília no Canal 15 da NET. 

TV UFMA Maranhão: quinta-feira às 10h40, no canal aberto 16.1, Sky 316, TVN 16 e Claro 17. 

Sintonize

No rádio, o  programa Bem Viver  vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 11h às 12h, com reprise aos domingos, às 10h, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo e 93,3 FM na Baixada Santista.

O programa também é transmitido pela Rádio Brasil de Fato, das 11h às 12h, de segunda a sexta-feira. O programa Bem Viver também está nas plataformas Spotify, Google Podcasts, iTunes, Pocket Casts e Deezer.

Da Redação