O dilema da cesta básica zambiana
Brasil de Fato
O setor agrícola da Zâmbia é dominado por pequenos agricultores que têm acesso limitado às tecnologias de irrigação. Como resultado, mais de 90% da produção de milho é totalmente dependente das chuvas. Para tentar melhorar a produtividade dos pequenos agricultores, o governo da Zâmbia introduziu o programa Farmer Input Support Program (Fisp) em 2009.
O Fisp fornece sementes e fertilizantes subsidiados pelo governo para os pequenos agricultores. Contudo, a distribuição ainda é insuficiente para a quantidade e realidade desses produtores. Muitos deles encontram-se isolados e sem assistências de qualquer política pública. Na temporada de produção de 2023/24, mais de um milhão de pequenos agricultores receberam dez quilos de sementes de milho, 300 quilos de fertilizante, 1,5 quilo de adubo e um saco de sementes de uma cultura alternativa, como amendoim, soja, arroz, entre outros.
Após a declaração de um “Desastre e Emergência Nacional” pelo presidente, o governo autorizou o setor privado a importar milho branco e amarelo. Entretanto, uma das principais condições para a importação de milho é um certificado de isenção de organismo geneticamente modificado – ou transgênico – do país de origem. Essa exigência limita essencialmente as importações de milho da Zâmbia de seu país vizinho, a Tanzânia, pois exclui em grande parte as importações de milho da África do Sul, o principal produtor de milho no sul da África. Mais de 85% do milho na África do Sul é plantado com sementes geneticamente modificadas e, apesar do impacto da seca induzida pelo El Niño, o excesso de milho de mais de 1 milhão de toneladas métricas (MT) estará disponível para exportação.
A produção de milho esperada de 1,2 MT/Ha (medida de rendimento agrícola) no ano fiscal de 2024/25 é 48% menor do que a média de 5 anos de produção de milho, de 2,3 MT/Ha para a Zâmbia.
A produção de milho de milho na Zâmbia tem se mantido em uma trajetória negativa nos últimos dez anos, enquanto a produção mais alta foi impulsionada principalmente pela expansão da área de cultivo. O cultivo de milho geneticamente modificado (GE) ainda é proibido na Zâmbia. No entanto, o país fez revisões em sua política de biossegurança, ou seja muito em breve, por conta da escassez, o pais passará a importar também milho geneticamente modificado.
O governo coloca isso como uma medida rumo ao avanço tecnológico na agricultura. Todavia, sabemos que a flexibilização das políticas de biossegurança pode representar a consolidação da visão do agronegócio para a agricultura familiar.
Como já apontado, o milho é a cultura mais importante da Zâmbia. Ele é amplamente cultivado por pequenos agricultores e é o alimento básico nacional, na forma de um mingau chamado “nshima”. O milho fornece cerca de 60% das necessidades calóricas da população de aproximadamente 20 milhões de habitantes do país.
Além do milho, os zambianos também consomem trigo, sorgo, mandioca e arroz como fontes de carboidratos. As estimativas indicam que o consumo humano de milho cairá 7% no ano fiscal de 2024/25 devido à baixa disponibilidade e ao aumento dos preços do milho em decorrência da seca.
As necessidades industriais do cereal são estimadas em cerca de 150 mil toneladas métricas, enquanto o milho para ração animal para os setores de aves e gado é estimado em cerca de 300 mil toneladas métricas. As perdas pós-colheita são estimadas em cerca de 5% da produção. Portanto, a demanda interna total de milho da Zâmbia no ano fiscal de 2024/25 é estimada em 2,5 milhões de toneladas métricas, uma queda de 9% em relação ao ano fiscal de 2023/24. A economia doméstica está em dificuldades, juntamente com taxas de inflação relativamente altas para a maioria dos produtos agrícolas devido à seca, dificultando qualquer crescimento na demanda por milho.
A alta da inflação foi impulsionada principalmente pelo aumento do preço de alimentos e pode continuar a crescer devido a um novo aumento da demanda por milho. A economia da Zâmbia cresceu apenas 2,7% em 2023, pois as contrações nos setores de mineração e energia e uma epidemia de cólera prejudicaram as atividades econômico devido à seca e à crise de eletricidade.
Notavelmente, o combustível tem desempenhado um papel fundamental na determinação dos preços gerais de bens e serviços. Os preços atuais dos combustíveis tendem a agravar uma situação já crítica. Diante de um cenário econômico desafiador, a população da Zâmbia continua confrontada com uma realidade urgente: o aumento do custo de vida, o que afeta especialmente aqueles que já estão lutando contra a vulnerabilidade financeira e têm rendimentos entre 1,5 mil e 2,5 mil kwachas zambianos (ZMK), o equivalente a valores entre R$ 311 e R$ 519 ou US$ 57 e 97.
Olhando para o futuro, é evidente que o país logo enfrentará as repercussões de uma estação agrícola desfavorável. A escassez de água prevista e os consequentes contratempos agrícolas representam ameaças significativas, levando à insegurança alimentar, à perda de renda e ao aumento do custo de vida. As comunidades vulneráveis, já sobrecarregadas por condições de vida desafiadoras, correm o risco de cair na miséria, colocando em risco sua dignidade.
A necessidade de ações urgentes e eficazes por parte do governo torna-se evidente, não apenas como uma questão política, mas como uma responsabilidade de proteger e apoiar seus cidadãos. Embora vários fatores contribuam para o aumento do custo de vida, ainda faltam estratégias e políticas afirmativas para reduzir esses efeitos. Além disso, indivíduos resilientes, que há muito tempo confiam na promessa de uma estação agrícola frutífera, se veem confrontados com as duras consequências das chuvas fracas. As circunstâncias tiveram impacto sobre o cultivo de culturas sazonais, incluindo abóboras, legumes, batata-doce e amendoim.
Segundo estudos do Centro Jesuita para a Reflexão Teológica (JCTR), revelou-se um aumento alarmante no custo de vida referente a produtos essenciais, com um ajuste de 7,9% em comparação com janeiro de 2024. O custo de vida de uma família de cinco pessoas, medido pela Cesta de Necessidades Básicas e Nutrição (BNNB) do JCTR em fevereiro de 2024 em Lusaka, agora é de ZMK 10.307,01 equivalente a US$ 396 ou R$ 2.147. Isso representa um aumento substancial de ZMK 751,48 em relação ao valor do mês anterior.
Os preços médios de vários itens alimentícios nas cestas aumentaram, com o custo das verduras passando de ZMK 571,99 para ZMK 689,97 por 40 quilos, e o de outras frutas, de ZMK 12,72 para ZMK 27,21 por quilo. Além disso, o preço do arroz aumentou de ZMK 145,00 para ZMK 160,07 por 5 quilos. Os itens alimentícios continuam a ser influenciados pela sazonalidade dos produtos, por um lado, e, por outro, pela escassez de commodities no mercado de alguns produtos por conta das despesas de importação, que tendem a ser afetadas pela taxa de câmbio.
O relatório também destaca um aumento nos preços da seção de itens não alimentícios em Lusaka, atribuído principalmente ao aumento dos serviços públicos no mês analisado. Os custos médios de serviços essenciais em habitação cresceram: em média, o aluguel de uma casa de três quartos agora custa ZMK 3.967, com as famílias gastando aproximadamente ZMK 653 e ZMK 300 em eletricidade e água, respectivamente. Essas constatações ressaltam a necessidade urgente de esforços conjuntos para abordar os desafios enfrentados pela maioria dos zambianos.
O impacto do alto custo de vida é suportado pelas pessoas mais pobres e marginalizadas da Zâmbia. Deve-se observar que mais da metade da população da Zâmbia vive abaixo da linha da pobreza e a maior parte desse grupo demográfico é de mulheres. Além disso, o censo de 2021 da Agência de Estatísticas da Zâmbia mostrou que o desemprego é maior entre as mulheres do que entre os homens. Há 60,5% de homens empregados no país, mas apenas 39,5% de mulheres. A pesquisa também relatou que os homens tinham uma renda mensal mais alta do que as mulheres em todos os diferentes setores.
O alto custo de vida é um impulsionador da desigualdade de gênero. Isso ocorre porque, ao limitar a capacidade das mulheres de pagar ou ter acesso a bens e serviços essenciais, seu bem-estar é afetado negativamente. Quando mulheres e meninas não podem comprar itens essenciais, como produtos de higiene menstrual, alimentos, água e energia, têm seu desenvolvimento prejudicado.
Portanto, é necessário abordar o alto custo de vida. É evidente que a faísca que acendeu a fogueira foi a crise da dívida pública. A dívida externa da Zâmbia no final de junho de 2022 era de US$ 14,87 bilhões, com uma relação dívida/PIB de 103,7%. Com uma tendência preocupante de mais de 40% dos gastos do governo estarem dedicados ao pagamento da dívida ao longo dos anos, torna-se um desafio garantir uma receita per capita suficiente para os gastos do setor social e, em particular, para os programas de igualdade e equidade de gênero, todos eles essenciais para o bem-estar e o desenvolvimento das mulheres. Portanto, o ponto de partida para lidar com o alto custo de vida na Zâmbia, que está afetando as mulheres de forma mais desproporcional, é lidar com a crise da dívida.
*Elizabeth Conceição é comunicadora social e educadora popular, militante do setor de educação do MST em Goiás e integrante da brigada internacionalista Samora Machel na Zâmbia.
**Este é um artigo de opinião e não reflete necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.