É preciso reencantar a educação para reencantar a cidade de Porto Alegre

Brasil de Fato

Porto Alegre (RS) tem a memória da experiência democrática de 16 anos de Administração Popular. A cidade foi referência internacional de participação cidadã nas decisões municipais. A cidade do Fórum Social Mundial, do Orçamento Participativo, da cidadania ativa na proposição e no controle social das políticas públicas.

A partir de 2004, a cidade foi sendo privada dos seus espaços participativos, de suas práticas coletivas de ação política. O público foi enfraquecido e a prioridade passou a ser o interesse privado, determinado pelo mercado.

Resgatar a memória e experiência da democracia participativa da cidade é o desafio atual. Não para repetir mecanicamente uma experiência, mas para ressignificá-la, aportando-lhe sentidos de presente e futuro.

A situação atual das escolas públicas municipais de Porto Alegre revela descaso, descuido e ausência de um projeto integrador da rede escolar, que garanta uma identidade política-pedagógica própria na rede pública e que se articule com outras políticas municipais, instituições e atores sociais que podem potencializar e qualificar o trabalho realizado.

Os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) deste ano revelam que Porto Alegre tem, entre as capitais dos estados brasileiros, um dos piores desempenhos em termos do nível de aprendizagem e aprovação dos seus estudantes. Além disso, é expressivo o número de crianças excluídas do acesso à educação infantil.

O Censo Escolar aponta que a educação básica teve uma queda, nos últimos dez anos. Foram em torno de 42 mil matrículas a menos na rede estadual em Porto Alegre, e de 3 mil matrículas na rede municipal. Na educação infantil, a rede municipal tem apenas 500 a mais que dez anos atrás e os dados da demanda mostram um déficit de 7 mil matrículas. Já a educação de adultos tem 1.500 matrículas a menos que há dez anos.

A democratização do acesso continua sendo um desafio para a educação na cidade. A superação desta complexa situação exige uma resposta, também complexa, que aborde os aspectos internos da vida das escolas e externos, da vida dos estudantes.

No âmbito interno, é preciso redimensionar a formação dos professores e prover as instituições educativas com as condições necessárias para a efetivação do direito à educação, garantido constitucionalmente. Já nos aspectos externos devem garantir a qualidade das condições de vida de nossos meninos e meninas, incidindo positivamente para a permanência na escola.

A primeira tarefa relaciona-se ao levantamento, bairro a bairro, da demanda por vagas na educação infantil e no ensino fundamental, para o atendimento universal de crianças e adolescentes, nestas duas etapas da educação básica.

Também se coloca, como tarefa prioritária, a ampliação da oferta da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Esses atores devem ser estimulados a voltar para os processos de escolarização, tanto para qualificação de sua vida social, profissional e cidadã, quanto para qualificação da ambiência pedagógica que favorecerá também os processos de escolarização das crianças e adolescentes.

As experiências acumuladas, no campo da educação, apontam para a necessidade da implicação dos professores(as) e de outros(as) profissionais, a partir do contexto de cada escola e de suas características sócio-territoriais, na pactuação de objetivos e na mudança de rumos no trabalho cotidiano. O intuito é garantir permanência, aprendizagens e o pleno desenvolvimento aos educandos(as) e estudantes, assegurando a inclusão de todos(as) e de cada um(a).

Nessa perspectiva ainda é preciso qualificar processos e recursos pedagógicos voltados também à inclusão de alunos(as) com deficiência, como o fortalecimento das salas de recursos, ampliação do número de monitores e formação de educadores.

Propõe-se, no contexto deste diálogo, a progressiva ampliação da jornada escolar diária, para crianças e adolescentes, visando a consolidação universal da escola de educação integral em tempo integral na capital gaúcha.

Para tanto será necessário, em colaboração permanente com o governo federal, a partir do proposto pela Lei 14.640/23, articular os espaços das escolas com outros espaços possíveis e a serem mapeados na cidade, preferencialmente em instituições educativas, culturais, esportivas e científicas, que propiciem a extensão da jornada escolar, para a complementaridade interinstitucional, tendo como foco a formação integral dos estudantes.

Propõe-se pensar em termos de territórios educadores que mapeiem, no âmbito dos bairros ou inter bairros, tanto as possibilidades educadoras, a serem identificadas, afirmadas e articuladas, quanto os fatores deseducadores a serem superados e que demandam articulação com Conselhos Tutelares, Unidades de Saúde, Segurança Pública, entre outros, para superar a violência endêmica que assola inúmeras comunidades em Porto Alegre.

Esta proposta implica a assunção do princípio da intersetorialidade, integrando a ação das diferentes secretarias municipais para incidir nos territórios, a fim de garantir o acesso, o acompanhamento, a permanência e a qualificação das aprendizagens.

A escola precisa consolidar-se como um polo de educação, cultura, esportes e lazer em seu território, promovendo atividades que envolvam toda a comunidade, disponibilizando seus espaços inclusive nos finais de semana, também para organização de turmas de EJA e alfabetização de adultos.

Nesse sentido, é necessária a criação de um programa de escola aberta para as comunidades escolares para qualificação dos tempos e espaços de convivência entre crianças, jovens, adultos e idosos, na perspectiva da afirmação de uma cultura de paz e diálogo.

Trata-se, portanto, de construir um novo pacto entre o governo municipal e a cidadania de Porto Alegre, para garantir que nossas crianças e jovens – a maior riqueza de que dispomos – possam inserir-se de modo pleno na convivialidade social, em todos seus aspectos, considerando, como disse Hannah Arendt, que a educação é o ponto em que decidimos:

se amamos as nossas crianças o bastante para não as expulsar de nosso mundo e abandoná-las aos seus próprios recursos, e tão pouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova imprevista para nós preparando-as, em vez disso, com antecedência, para a tarefa de renovar nosso mundo comum

Educar para “renovar nosso mundo comum” nos remete também a uma escola em um contexto de cidade profundamente atingida pela crise climática global, com as suas piores e mais danosas consequências. A situação demanda ações pedagógicas que integrem às atividades curriculares uma educação que promova o aprendizado da convivência respeitosa e equilibrada com a natureza, sem dicotomizar natureza humana e natureza física, afirmando uma nova dimensão de aprendizado de defesa da vida. Dimensão essa que possibilite a formação de um cidadão comprometido com a preservação dos elementos naturais que garantem a existência humana e a vida em geral, no âmbito local e global.

A educação na cidade é desafiada a formar o cidadão com consciência crítica sobre todos os aspectos da vida em sociedade, incorporando a compreensão da crise climática, provocada pelos humanos, e sobre a necessidade de mitigar seus efeitos, bem como desenvolver ações para harmonizar as relações entre humanos e ambientes, prevenindo novas catástrofes.

* Eliezer Moreira Pacheco, ex-secretário de Educação de Porto Alegre; Jaqueline Moll, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); José Clóvis Azevedo, ex-secretário de Educação de Porto Alegre; Maria Beatriz Pauperio Titton, professora aposentada da rede municipal de Porto Alegre

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Da Redação