O adeus ao cineasta Vladimir Carvalho, referência do Cinema Novo ao documentário

Brasil de Fato

Cineasta, professor da Universidade de Brasília (UnB) e frequentador assíduo do Cine Brasília, Vladimir Carvalho teve seu corpo velado na manhã desta sexta-feira, 25 de outubro de 2024, no histórico cinema, inaugurado em 1960 junto com a fundação da capital brasileira.

“Tudo que Vladimir fez no cinema, na sua vida política, de cidadão, se confunde com a cidade, com os amigos, com quem tem menos. Tudo que ele fez é um legado que não vai com ele, é um legado que está aí, que é o cinema que ele nos mostrou”, declarou o irmão, o também cineasta Walter Carvalho, para o Brasil de Fato DF.

Integrante do movimento Cinema Novo, ao lado de nomes como Glauber Rocha, Vladimir Carvalho morreu na manhã de quinta-feira (24) aos 89 anos, em Brasília (DF). Ele estava internado no Hospital Santa Helena há uma semana, após sofrer um infarto.

O velório foi realizado das 9h30 às 13h30, em meio a uma manhã chuvosa, no Cine Brasília. Estiveram presentes amigos, familiares e autoridades do DF e da cena audiovisual. A viúva Maria do Socorro Coutinho de Carvalho também acompanhou a cerimônia.

Para o irmão Walter, “Brasília e Cine Brasília são sinônimos de Vladimir”. “Eu olho para essa cidade e só o vejo. Foi ele quem me trouxe aqui pela primeira vez, foi com ele com quem trabalhei e acompanhei de diversas formas”, explicou o irmão, acrescentando que também foi parar no cinema por conta de Vladimir.

Doze anos mais novo, Walter foi convidado para ser fotógrafo do irmão no curta “Incelência para um Trem de Ferro”, de 1972. Na época ele não tinha experiência na área, mas foi incentivado por Vladimir a não desistir da oportunidade.


Walter Carvalho (de roupa preta) se tornou cineasta por influência do irmão. / Foto: Camila Araujo

Para a produtora executiva do Cine Brasília, Daniela Marinho, além de formar várias gerações no audiovisual, o cineasta também se empenhou em preservar a memória audiovisual no Brasil, construindo a Fundação Cine Memória em 1994.

O acervo guardado por Carvalho em Brasília tem mais de 5 mil itens, entre jornais, revistas, fotografias, filmes, máquinas, câmeras e até a Moviola, equipamento de montagem cinematográfica, usada por Glauber Rocha em “Terra em Transe”. A intenção era criar uma ‘extensão’ da Cinemateca Brasileira na capital.

“Vladimir formou várias gerações no cinema, e também se empenhou na preservação da memória audiovisual. Por um esforço dele, construiu o Cine Memória, preservando filmes e equipamentos. Não só da memória dele, mas do audiovisual brasileiro. A gente espera que instituições como a UnB, a Secretaria de Cultura do DF, o Ministério da Cultura, possam continuar esse legado”, defendeu Daniela.

Trabalhadora do audiovisual há quase 20 anos, ela conta que Vladimir Carvalho sempre foi uma referência para ela, destacando o “País de São Saruê”, de 1971, como uma de suas obras favoritas e um marco no cinema brasileiro e mundial.


“Vladimir Carvalho sempre foi uma referência pra mim”, diz a produtora executiva do Cine Brasília, Daniela Marinho. / Foto: Camila Araujo

O documentário retrata a vida de lavradores e garimpeiros no vale do rio do Peixe, mostrando o cotidiano de secas e pobreza no semiárido nordestino. Às 14h, após o velório, quando o corpo de Vladimir foi encaminhado para o Cemitério Campo da Esperança, na Ala dos Pioneiros, o Cine Brasília exibiu uma sessão gratuita do filme.

“Quando o conheci, Vladimir já era uma pessoa importante há muitos anos e mesmo assim ele sempre foi muito generoso com estudantes e as novas gerações. Ele era um frequentador assíduo do Cine Brasília e sempre disposto a trocar, dialogar e construir junto. Uma figura inspiradora, fico honrada de ter contato com mestres como ele. Deixa um legado eterno, em nossos corações e também na história”, disse Daniela Marinho.

Secretário de Cultura e da Economia Criativa do Distrito Federal, Claudio Abrantes destacou que a jornada de Vladimir por Brasília “foi muito frutífera” e que o cineasta escolheu a capital para divulgar “sua arte e talento”.

“Quando a gente olha pro passado, o sentimento é de gratidão imensa por tudo que ele fez e tudo que ensinou. Quando a gente olha pro futuro, existem questionamentos de como vai ser sem ele. Mas também existe a esperança de que seus ‘filhos’, do ponto de vista da arte, quem bebeu da fonte, vão ter oportunidade de continuar esse trabalho”.

Referência do documentário

Nascido em Itabaiana, na Paraíba, em 1935, Vladimir Carvalho dedicou vida e obra à produção cinematográfica, tendo se tornado uma das principais referências do documentário brasileiro.

Na infância, ele morou na capital pernambucana, Recife, tendo se mudado depois para a capital paraibana João Pessoa. Iniciou a carreira na cinematografia escrevendo críticas de filmes em jornais paraibanos. Em “Aruanda” (1960), marco do cinema da Paraíba, Vladimir atuou como assistente de direção de Linduarte Noronha.

Estudante de Filosofia na Universidade da Bahia, em Salvador, se tornou assistente de direção do filme “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, cujas gravações foram interrompidas em 1964, com o golpe militar.

Mudou-se para Brasília em 1970, e fez da capital o palco de inúmeros de seus registros videográficos.

O documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra”, de 1991, por exemplo, narra a história da construção de Brasília do ponto de vista dos trabalhadores que, após a fundação da capital, foram empurrados para regiões periféricas e, no caso do Massacre da Construtora Fernandes Dantas, foram mortos na Vila Planalto antes mesmo da inauguração da capital.

No também clássico “Barra 68 – Sem perder a ternura”, de 2000, o diretor revisita histórias de violência na UnB durante a ditadura militar, em 1964, no golpe, em 1968, em um episódio de repressão contra estudantes, e em 1977, quando a universidade novamente seria reprimida pelo Exército.


Cartazes dos filmes “País de São Saruê”, de 1971 e “Conterrâneos Velhos de Guerra”, 1991. / Foto: Reprodução/Divulgação

O BDF DF preparou um material mostrando as cinco obras essenciais para conhecer o trabalho de Vladimir Carvalho.

:: Cinco filmes essenciais para entender a obra de Vladimir Carvalho ::

‘Deixa profundo legado’

Ator e professor aposentado da UnB, João Antonio de Lima conta que viveu várias batalhas com o colega, “na política cultural, na política da universidade, na política do cinema e na cidade”. “Ele era presente em todas as áreas da cidade e participava profundamente da vida de Brasília. Como eu, um velho que renasceu na cidade.”

Docente da Faculdade de Comunicação (FAC), da UnB, de 1969 a 1992, e professor emérito desde 2012, “tem muita importância, não só para a cidade, mas para o país. Um dos maiores documentaristas brasileiros. Um nome nacional com identidade brasiliense. Isso para nós é uma honra extraordinária”, descreveu João Antonio.


Ator e professor da UnB, João Antônio conta que viveu várias batalhas ao lado de Vladimir. / Foto: Camila Araujo

Já a pesquisadora da história do Cinema, Berê Bahia conta que conheceu Carvalho em 1981 à frente da Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo (ABCV), então Associação Brasileira de Documentaristas. Na ocasião ele organizava o Primeiro Festival de Cinema Brasiliense. 

“Nossa relação foi se aprofundando porque tínhamos interesses em comum. Em 1985, nos 25 anos de Brasília, eu apresentei a proposta de fazermos uma mostra em comemoração às bodas de prata da capital, só com cineastas brasilienses. Infelizmente a mostra não aconteceu como foi pensada, porque justamente nesse ano faleceu Tancredo Neves, antes de tomar posse. Mas a gente ainda conseguiu marcar as bodas de prata exibindo vários filmes de cineastas que moravam em Brasília”. 

Foram 43 anos de uma relação “muito profunda, de amizade, respeito mútuo e admiração”. Vladimir é, diz Berê, espinha dorsal da universidade, do cinema e da política. “Em todas essas áreas ele deixa um profundo legado para gerações passadas, atuais e a que virão, que terão a obrigação de saber quem foi esta figura no cenário cultural e político brasileiro”.


Berê Bahia, pesquisadora da história do cinema, manteve uma relação de 43 anos com Vladimir Carvalho. / Foto: Camila Araujo

Armando Lacerda, egresso da UnB na mesma turma de Vladimir Carvalho, se formou em 1974. “Com meu mestre eu filmei muita coisa aqui no Centro-Oeste. Ele me levava pra filmar, me emprestava os equipamentos. Pelas mãos de Vladimir, eu tive na universidade o melhor de tudo”, conta o jornalista, acrescentando que tem buscado recuperar as imagens da época. 

“Hoje eu vejo a grandeza que esse mestre me proporcionou, me oferecendo infraestrutura, apoio moral, críticas, sugestões. Uma figura que eu admiro, e cuja partida me deixa triste”, declarou Armando. 

Juntos, Armando e Vladimir fizeram o longa-metragem “O Evangelho Segundo Teotônio”, de 1984, no qual o primeiro atuou como produtor e o segundo diretor. Disponível para assistir on-line no canal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o filme conta passagens da vida do ex-senador alagoano Teotônio Vilela, com ênfase no processo de sua formação como homem público. 

Armando diz ainda que era sempre estimulado pelo amigo, que o apoiou na produção do filme “Juruna, o Espírito da Floresta” sobre o primeiro parlamentar federal indígena do Brasil, Mário Juruna, do povo Xavante.


Armando Lacerda produziu “O Evangelho Segundo Teotônio”, dirigido pelo amigo cineasta. / Foto: Camila Araujo

‘Presente em todas as causas’

O jornalista Beto Almeida, um dos diretores da TeleSur, falou sobre a importância de Vladimir Carvalho para as lutas estudantis e o movimento de greve de 1974. 

“Ele foi gravar uma daquelas grandes assembleias, com cinco, seis mil pessoas. Como havia muita paranoia, por conta do medo da repressão da ditadura, quando ele chegou com a câmera o pessoal olhou com uma certa desconfiança. Eu o conhecia já, mas a maioria das pessoas não sabia quem era ele. Eu disse ‘esse daqui é um grande documentarista premiado, ele quem fez o País do São Saruê. Ele está fazendo isso para levar às novas gerações a mensagem transformadora dessas assembleias, do movimento estudantil e da greve’. Aí todo mundo se acalmou”. 

Beto Almeida detalhou ainda o último encontro com Vladimir Carvalho, que foi assistir no Teatro Mapati, em Brasília, o recém-lançado documentário do jornalista “Vargas, a transformação do Brasil”, um mês atrás, em setembro. “Eu pedi que ele viesse, assistisse ao filme e comentasse, como meu professor. Ele me deu ideias muito boas, sugeriu duas mudanças na edição e eu já as incorporei ao filme”. 

Depois da exibição, o jornalista conta que foram comer pizza e prolongaram a conversa até madrugada. “Fui levá-lo em sua casa e para mim foi como uma despedida”. 

“Vladimir é daquelas pessoas que levam consigo as crianças palestinas, vivas, no coração. Ele partilhava a esperança de que a humanidade vai vencer  e construir uma civilização realmente generosa. Ele tinha esse otimismo com as grandes e necessárias causas da humanidade”, destacou Almeida. 

A professora emérita da UnB Maria Auxiliadora César, socióloga, assistente social e fundadora do Núcleo de Estudos sobre Cuba da universidade (Nescuba), conta que o cineasta era uma pessoa “muito simples” e estava “presente em todas as causas: nas lutas da América Latina, da Palestina e do mundo”. 

“Ele captou a realidade com sua lente maravilhosa, mas não ficou apenas na denúncia. Denunciou de forma com que as pessoas pudessem ir em frente”, acrescentou Dora, como é conhecida, destacando que Vladimir Carvalho foi apoiador desde o início da primeira Associação Brasil-Cuba, fundada em 1985. “Ele era presente e permanecerá presente. Em janeiro, comemoraremos seus 90 anos”, concluiu.


Vladimir Carvalho, cineasta brasileiro (1935-2024). / Foto: Roberto Fleury/ Agência UnB

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Da Redação